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Foto do escritorKami Girão

Sem nome, sem documento


Chamei de "coisa sem nome". Com o CID mudando a cada novo sintoma, entendi que nem meu médico sabia ao certo como nomear. O que há em um nome? Uma rosa, com qualquer outro nome, teria o mesmo perfume, já disse Julieta, os braços ao redor do pescoço de Romeu. Para dores e amores, designações não fazem diferença.


Não há em minha certidão o sinal da paixão proibida, um Montecchio que me limite a encontros furtivos na varanda. Em meu corpo, porém, reside os sinais desses registros que não se firmam, os efeitos para conter a criatura sem batismo. Os soldados foram vários. Fluoxetina, quetiapina, trazodona, topiramato, lítio, lorazepam. Lurasidona. O fígado já envelhecera pela mudança sequenciada das tropas. Se em conjunto, essas frentes que vinham de senhores variados, o desequilíbrio surgia. Eu dormia dormia no meio de reunião, à luz dos colegas de trabalho, ou andava com asas nos tornozelos, flutuando, leve demais até para comer. Sem peso, mas com voo certo, marcado a partir das três da manhã. Dentro de mim, a coisa fingia controle. Passava de bicho domesticado para atacar ao primeiro olhar desatento.


Fiz dossiê para documentar seu surgimento, seguindo critérios quase científicos: entrevistas com quem me vira nas fraldas, anotações sobre minhas próprias palavras ao longo da vida, lembranças que quase foram condenadas ao desaparecimento. Para meu Rumpelstiltskin, tudo que levei reforçava apenas a sua teoria - a de que o nome que eu pensava era apenas uma tentativa, minha, de me enquadrar em publicações populares de rede social, conhecimento que saía das mãos acadêmicas para uma plebe inculta. Ele sapateou sobre minha tese, negando o nome que eu tanto procurava, ainda que não estivesse vermelho de raiva. Mas insistiu na química que já não fazia mais efeito sobre meu corpo.


Fora com xXxHolic, aos treze anos, que entendi toda a carga de poder que um nome carrega consigo. Yuuko Ichihara, ao se apresentar ao jovem e confuso Watanuki, deu-lhe um nome falso. Dizer o verdadeiro deixa o ser nomeado passível de manipulação, vulnerável a quem conhece a sua identidade. Em certas culturas, não se fala o que não é desejado usando o termo original. Para evitar a maldição e invocar o que não se quer, emprega-se outros designativos. Pronunciar ou escrever chama aquilo que não é bem-vindo. Às vezes, tinge-se de pudor ao evitar certos verbetes do dicionário. "Estou naqueles dias", "fizemos amor", "passou dessa para melhor".


Para quem cuidou de mim, deixar encoberto o que é a coisa que reside em minha cabeça afasta o seu verdadeiro poder. É algo, apenas. Sem nome, sem documento. Me deixa prostrada, me deixa à flor da pele, me faz chorar quando não devo, me faz sentir um gosto metálico na boca ao primeiro sinal de perigo. Conhecer a fundo me fará absorver aquilo que deve ser mantido sobre sigilo, incorporando uma personalidade que se justifica em manuais de medicina. Mas, se por um lado mantenho uma identidade fora de códigos que desconheço, na outra ponta me sinto sem nada para combater o que quer que more em meu corpo. Indefesa, trago fórmulas externas para conter o que, talvez, pudesse ser resolvido no momento em que pronuncio seu nome em voz alta. Não para invocar, e sim para domar, segurar pelo pescoço e imobilizar no chão, feito cobra contida.


A rainha demorou três dias para, findando a aposta, revelar a Rumpelstiltskin que ela conhecia o seu nome. Domado o duende, este desaparece em fúria, partindo-se em dois. Diferente da protagonista do conto, levei mais de trinta anos para arranhar uma hipótese sobre a coisa que vive em mim, escrevendo e riscando em cadernos as suspeitas sobre sua verdadeira identidade. Deixo, porém, que ela acredite que sigo desconhecendo seu batismo. Na hora certa, repetirei seu nome três vezes. E nessas três vezes, serei, enfim, capaz de ser uma frota inteira apenas pelo poder daquilo que sai da minha boca.

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