Rolando a timeline no Instagram (sempre ele), me chega um post de um autor relativamente conhecido, cujos livros foram publicados por uma grande e queridinha casa editorial. A soma em sua rede não é tímida, mais de dez mil seguidores já são alguma coisa se considerarmos um mercado que valoriza bastante números a texto, e ele ventilou em uma publicação: “O Brasil tem um problema muito sério na literatura: pouquíssimos leitores. O resto é consequência.”
Nos comentários, muitas pessoas endossavam o posicionamento, inclusive chamando o país de “bostil”. Eu, que nem podendo pegar treta na internet eu posso, visto que meu punho ainda não caiu do braço, embora esteja perto, não consegui segurar. Não porque me considero o bastião da literatura brasileira, e sim por causa dos meus amigos que trabalham diretamente com isso, para além da escrita em si. Não fazia um dia direito que eu assistira ao podcast do Vida & Arte, em que meus amigos pessoais Isabel Costa e Talles Azigon falavam sobre o lançamento de Pitaya, primeiro livro da Bel, publicado pela editora do Talles, a Substânsia, e sobre suas vivências enquanto pessoas da cena da literatura cearense. Bel, além de cronista do Jornal O Povo, é professora da educação básica e mediadora de leituras. Talles, que conheci quando ele me segredou que fizera um poema dedicado a mim, é poeta, produtor cultural, editor e cabeça da biblioteca comunitária Livro Livre Curió. Gente que têm muita, mas muita vivência.
Durante o podcast, ao explicar sobre a Livro Livre Curió, Talles traz uma informação importante, e dolorosa: em 2015, o Curió foi palco de um evento tenebroso, que vitimou onze pessoas e deixou outras sete feridas. As mães das vítimas buscam ainda hoje justiça pelas famílias dizimadas, em processo que se arrasta há quase dez anos. Porém, a iniciativa da biblioteca muda a perspectiva sobre o bairro em si e sobre quem mora no Curió. Não são mais conhecidos pelo sangue nas calçadas, e sim pelos livros que saem da casinha pintada à Rua George Sosa, 109, que recebeu até mesmo Dona Conceição Evaristo para um café. Crianças que cresceram entre as prateleiras de metal envergadas seguiram rumos pelas letras, afirma Talles. Escolheram jornalismo, produção cultural, edição.
Cito a Livro Livre Curió porque acompanhei a sua gênese, uma semente que surge a partir da casa de Talles e vira referência turística e cultural para Fortaleza, cheia de atividades para quem tem pouca e para quem tem muita idade. São pessoas que vão para lá atrás de livros, de conversas, de café, que são acolhidas pela Dona Ritinha, que adora papear e tem assunto para mais de uma tarde. É pensando nesse lugar que me vem o estranhamento ao post do referido escritor que abre este texto. O brasileiro não lê? Mesmo?
Virei rata de editais desde que fui aprovada em um três anos atrás, o que rendeu a Fisheye a edição definitiva (ou “novo testamento”, como também gosto de chamar). Nas áreas de literatura, há algumas categorias de submissão, que vão desde a publicação em si a atividades de circulação — como a própria mediação. Logo, o fomento e o incentivo à leitura fazem, e precisam ser vistos como, parte de um projeto, o que vai muito além de ter uma rede social para indicar livros. Não estou, claro, desmerecendo criadores de conteúdo que trabalham com esse nicho, mas são áreas diferentes, e ter isso em vista é importante.
Digo isso, também, porque o amplo convívio com a tecnologia ainda não é uma realidade unânime. Mesmo que 84% dos brasileiros tenham acesso à internet hoje em dia, 76% não têm habilidades digitais. Não dá para alcançar todo mundo apenas com perfis em Instagram, TikTok, Xuíter, por mais que essas contas possam facilitar a difusão de novos títulos. O presencial segue com sua força intacta, e o fomento vem indiscutivelmente pelo incentivo público. É o incentivo em espaços destinados à cultura, como bibliotecas e livrarias de rua, em profissionais que conduzam as discussões em encontros, seja nos grandes centros e, principalmente, nos interiores do Brasil, em autores que precisam de investimento para rodar seus trabalhos — todo esse universo também faz parte da cadeia do livro.
Há reportagens que parecem reforçar esse sentimento de desprezo do Brasil pelos livros. No final do ano passado, a Publishnews reportou que apenas 16% do público de fato compra livros — motivado, compreensivelmente, pelos valores altos do mercado. Outro dado da CNN parece ainda mais preocupante: 66% dos estudantes não conseguem ler mais do que dez páginas de um texto. Porém, nessa mesma reportagem, há um fio de esperança. Diz:
Apesar dos indicativos negativos, os jovens brasileiros veem a leitura de forma positiva. Conforme questionário do Pisa, tanto na rede pública quanto na privada, mais de 40% dos alunos afirmam que gostam de falar sobre livros, média superior à registrada pelos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Volto mais uma vez à publicação que abre este artigo. Como falei, não segurei nem mesmo meu punho dolorido e redigi uma resposta ao colega, tendo em mente meus amigos e todo seu trabalho na cena literária de Fortaleza. Ele me respondeu também em pouco tempo, um pouco mais desiludido. Disse que se sente escritor de verdade estando ao redor de gente, mas precisa vender em rede social. E aí eu entendi que o mal dele não era o brasileiro que não lê, mas a rede que não entrega, os números que não sobem, um mercado que se baseia em dados que podem ser convertidos em venda. O problema, então, nunca foi esse leitor, e sim esse livro que não alcança o leitor, a carta extraviada pelo correio.
Mas esse é um ponto para outra publicação, outra linha de pensamento. O que importa aqui, tanto para mim quanto para esse colega cansado, é encontrar a pessoa que se interessará pelas histórias que temos a contar. Talvez, com um cafézinho na Dona Ritinha, e uma conversa com o coração mais calmo, a resposta chegue.
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